quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Página-a-página #95


«Sendo ele um dervixe que vivia em total liberdade, parecia-lhe até ridículo que as suas palavras estivessem tão mudas, tão absolutamente presas. Talvez devesse gritar. Talvez devesse dizer tudo, e então talvez o mundo se inundasse. Badini gastaria toda a sua alma e ela transformar-se-ia em sons perdidos no ar, e o seu corpo disforme de gigante seria um balão vazio. Deveria gritar, pensava Badini, porque já ninguém sabe gritar, anda tudo calado pela vida, sem indignação. E, por vezes, essas palavras engolidas são confundidas com tolerância.
Badini sentia que os sons que nunca pronunciara estavam a matá-lo, que agora eram caroços, que agora eram bombas a rebentar, que eram letais como sempre haviam sido. Deveria voltar a ser criança, falar outra vez, gritar pelos corredores e pelas ruas, correr atrás de uma bola de críquete ou de um papagaio de papel. E coalhar o queijo de ovelha com versos ingénuos. E então talvez voltasse a sentir aquela alegria de ser leve e o medo de ser espancado. Diziam que tinha derrotado um tigre com as suas mãos, mas agora o tigre que amestrara dentro de si espetava as garras na sua garganta para subir e ser um grito.»
Para onde vão os guarda-chuvas
Afonso Cruz

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