sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Página-a-página #77

«57. Quanto menor é a alma de um homem mais espaço ela ocupa. Não há espaço para ninguém ao seu lado.
Ninguém se senta ao lado do mulá ou de Vassilyevitch Krupin sem se  sentir apertado.
-Tens de dar uma cereja ao teu primo para ele voltar a falar - disse o general.
-Com a graça de Alá, ele fala - respondeu Elahi.
-Sim, mas só com as mãos.
-As mãos é que fazem coisas, não é a voz, pelo menos eu acho que não é a voz, não posso ter a certeza, que certezas só Alá é que tem. Quando é preciso descascar uma banana, usamos as mãos e não o som, não serve para nada o som. Não é assim, general Krupin? Não me olhe assim, estou a ser sincero, desculpe. O meu querido primo, gosto dele como meu irmão, em tudo o que faz está a falar, pois todos os seus gestos são palavras. Achha, não há diferença entre a voz e o acto, como acontece tão frequentemente por aí, basta olhar para aquele ministro, como é que se chama? Não me lembro, adiante, que alá os castigue, dizem que fazem e depois não fazem, ou pior, cometem desgraças, umas atrás das outras. O meu primo, que é para mim um irmão, talvez mais do que um irmão, eu nunca tive um irmão homem, não posso saber, mas adiante, quando o meu primo descasca uma fruta, não a descasca simplesmente, como nós fazemos, quando usa a faca está a falar com as maçãs e as mangas e os marmelos, porque as suas mãos são frases, são discursos.
O general Ilia Vassilyevitch Krupin fez um gesto de enfado e disse:
-Em todo o caso, devia comer uma cereja.
-Com licença, general, o meu primo, todos os anos visita a cerejeira de Tal Azizi, que árvore bonita, que milagre. Deita-se debaixo dela, mas diz que aquela árvore é como toda a religião: só nos impede de ver o céu.»
Para onde vão os guarda-chuvas
Afonso Cruz

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