quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Página-a-página #92

«-Como é que eu lhe explico isto? Está a ver as histórias que lhe contei de Girijashankar? Se me perguntarem o que é que prefiro que sobreviva, o meu corpo ou estas histórias, eu não hesito. Se estiver numa prisão e tiver uma escolha dessas, não penso duas vezes. Tenho de salvar as histórias, salvar as ideias. Se eu as passar a outra pessoa, se ela as amar como eu, passa a ser eu, pois as coisas que amamos confundem-se com as coisas amadas, e só os maneirismos são diferentes. As histórias sou eu, Elahi sahib, sou eu. Sacrificaria o corpo e tudo o resto. O que é tudo o resto? Esta mania que eu tenho de comer pouco? Este feitio tolerante? Isto não vale nada, absolutamente nada. Deito tudo fora para salvar ideias, e cada vez que as passo a alguém, como aquela de adoptar um filho americano, reencarno. Nós hindus, apesar de eu ser um mulçumano, reencarnamos muito. E nem precisamos de morrer para o fazer. Basta contar uma história e lá vai uma reencarnação. O que é curioso é que a alma nem sequer se gasta. Podemos fazer isto milhares de vezes seguidas e até reencarnar ao mesmo tempo em milhares de corpos. Podemos reencarnar uma revolução. Abrimos a boca e as nossas ideias alojam-se nos outros como bactérias.»


Para onde vão os guarda-chuvas
Afonso Cruz

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