quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Página-a-página #101


«-Muito bem, parem - disse Keating aos quatro rapazes. - Ora bem, não sei se repararam que, ao principio, o Overstreet e o Pitts pareciam estar a andar de uma maneira diferente dos outros, Pitts com passadas largas, Knox saltitando levemente... mas não tardaram a acertar o passo com os outros até que todos estavam a andar com a mesma cadência. O que se tornou ainda mais visível quando começámos todos a bater palmas - notou o professor. - Esta experiência não foi pensada para chamar a atenção sobre Pitts ou Overstreet. O que ela demonstra é a dificuldade que todos nós temos em ouvir a nossa própria voz ou manter as próprias crenças na presença dos outros. E se qualquer um de vocês acha que não teria acertado o passo com os outros, então pensem porque é que estavam a bater palmas- Rapazes, existe em todos nós uma forte necessidade de aceitação, mas têm de acreditar naquilo que é único ou diferente em cada um de vocês, mesmo que seja algo estranho ou prejudicial à vossa popularidade. Como disse Frost, "Dois caminhos divergiam no bosque e eu - eu segui pelo menos percorrido, e isso fez toda a diferença."»

O clube dos poetas mortos
N. H. Kleinbaum

Isto é matemática #37


Monty Hall
«Sonhamos com o amanhã mas esse dia não chega;
Sonhamos com a glória que de facto não queremos.
Sonhamos com um novo dia quando já amanheceu.
Fugimos da batalha que sabemos ter de travar.
E ainda assim dormimos.

Esperamos o chamamento mas não estamos atentos,
Esperamos um futuro que não passa de planos.
Sonhando com o conhecimento que cada dia evitamos,
Rezamos por um salvador quando a redenção está nas nossas mãos.
E ainda assim dormimos.

E ainda assim dormimos.
E ainda assim rezamos.
E ainda assim tememos...
E ainda assim dormimos.»
Todd Anderson
O Clube dos poetas mortos

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Página-a-página #100


«-Não faz mal, Knox - continuou, virando-se para a turma - demonstra uma ideia importante. Seja em poesia, seja no que for, em tudo na vida há que preocupar-se com as coisas realmente importantes: o amor, a beleza, a verdade, a justiça. E não há necessidade de limitar a poesia à palavra. Pode haver poesia na música, numa fotografia, no modo como uma refeição é preparada... Tudo pode conter uma revelação. Pode existir nas coisas do dia-a-dia, mas não deve nunca ser vulgar. Escrevam à vontade acerca do céu ou do sorriso de uma rapariga, mas, quando o fizerem, deixem que a vossa poesia evoque a salvação, a perdição, qualquer coisa, não me interessa. O que importa é que ela nos ilumine, nos emocione e, se for inspirada, nos faça sentir um bocadinho imortais.
- Capitão! Meu capitão! - Chamou Charlie. - Há poesia na matemática?
A classe riu-se.
- Claro que sim, Dalton, há... elegância na matemática. Se toda a gente fosse poeta, o planeta morreria à fome! Mas a poesia tem de existir, e nós temos de reparar nela, reconhecê-la na mais ínfima, na mais insignificante das coisas, ou teremos perdido e deixado passar muito do que a vida tem para nos oferecer. »

O clube dos poetas mortos
N. H. Kleinbaum

Página-a-página #99


«-Sentem-se - disse Keating, quando chegaram ao meio do campo. - Os entusiastas estarão provavelmente em discussão sobre que desporto é melhor que o outro e porquê - disse, enquanto andava de um lado para o outro. - Para mim, o mais importante de qualquer desporto é a forma como os outros seres humanos nos podem levar a sermos melhores. Platão, um homem com muitos dotes, tal como eu, disse que 'Só a concorrência me faz poeta, sofista e orador'. (...)»

O clube dos poetas mortos
N. H. Kleinbaum

Isto é matemática #36


Quanto mede a costa portuguesa

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Página-a-página #98


«-Pois bem - continuou Keating -, a isso tudo eu respondo: balelas! As pessoas lêem poesia porque fazem parte da raça humana e a raça humana arde de paixão! Medicina, direito, a banca... Estas coisas são necessárias à vida. Mas poesia, romance, amor, beleza? São estas as coisas que nos mantêm vivos! Deixem-me citar-vos um poema de Whitman:

Pobre de mim! Ó vida! E os constantes problemas que se me deparam,
Os infinitos cortejos incrédulos, as cidades repletas de loucos...
Qual o valor de tudo isto, pobre de mim, ó vida?
Resposta
A tua presença - que a vida e a identidade existem,
Que o intenso espectáculo prossiga e que tu possas contribuir um com um verso.

Keating calou-se. A classe manteve-se em silêncio, digerindo a mensagem do poema. Keating olhou à sua volta uma vez mais e repetiu:
-'Que o intenso espectáculo prossiga e que possas contribuir com um verso.'
O professor permaneceu um longo momento em silêncio e depois, calmamente e com todos os olhos cravados em si, dirigiu-se ao quadro.
-Qual será o vosso verso? - perguntou.
Seguiu-se um longo momento de silêncio. Suavemente, Keating quebrou o feitiço:
-Vamos abrir os livros na página 60 e falar da noção de Romantismo de Wordsworth.»

O clube dos poetas mortos
N. H. Kleinbaum

«Somos os fazedores de música
E os sonhadores de sonhos,
Passeando pelos pontões solitários,
E descansando à beira de ribeiros desolados;
Perdedores que abandonaram o mundo,
Iluminados pela luz pálida do luar
E, contudo, neste mundo para sempre,
Tudo nas nossas mãos parece estar.
De maravilhosas e imortais canções
Construímos as nossas cidades,
E de uma fabulosa história
Criamos a glória de um império:
Um homem com um sonho
Investirá para conquistar uma coroa;
E três com uma melodia distinta
Podem esmagar um império.
Nós no tempo adormecidos,
No passado enterrado da terra,
Erguemos Ninive dos nossos suspiros,
E do nosso júbilo a própria Babel.
E com as nossas profecias de um valoroso mundo novo
O velho derrubámos;
Pois cada era é um sonho que morre,
Ou outro prestes a nascer.»
Arthur O'Shaughnessy

domingo, 26 de janeiro de 2014

Uma boa história nunca acaba #72


«Se os teus olhos pudessem falar, o que diriam?»

The Book Thief (2013). Drama. Guerra. Este filme conta a história de Liesel, uma menina alemã que deixou de viver com a sua mãe biológica, para viver com o casal Huberman. Não vou contar muito do enredo. Passa-se na Alemanha nazi, como já referi, e é uma adaptação do livro 'A rapariga que roubava livros' de Markus Zusak. Para quem leu o livro, que é o meu caso, penso que o filme ficou muito aquém. Não podia aliás ser de outra maneira, uma vez que o livro se desenrola por mais de 200 páginas que contém desenhos, poemas, interrupções feitas pela morte (narradora do livro), entre outras coisas. Apesar de tudo, não é um filme assim tão mau. É aliás um filme bom, só não digo muito bom por ter o livro como referência. Seria impossível incorporar todos os momentos vividos por Liesel em 90 minutos, até porque a imaginação trabalha por tempo indeterminado...



quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Uma boa história nunca acaba #71


«To see the world, things dangerous to come to, to see behind walls, to draw closer, to find each other and to feel. That is the purpose of life.»

The secret life of Walter Mitty (2013). Aventura. Drama. Comédia. Este filme é sobre a vida de Walter Mitty, um trabalhador da revista Life. Walter levava uma vida muito monótona, sem que nada de extraordinário acontecesse e portanto tinha certos momentos em que a imaginação tomava conta de si. Certo dia Mitty perde uma fotografia importante que irá determinar o resto da sua carreira e da sua vida. Vai à procura dessa fotografia e é precisamente nesta altura que a sua vida sofre uma reviravolta. Faz coisas que nunca pensou fazer, vai a sítios que nunca pensou ir e vive momentos únicos. Uma história muito simples, bem contada e que poderia perfeitamente ser a história de qualquer um de nós. Eu aconselho vivamente este filme! Dá um outro sentido à importância com que vivemos o dia-a-dia. Muito bom!

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

página-a-página #97


«-Aproveita o dia - repetiu Keating. - Porque é que o poeta escreveu estas linhas?
-Porque tinha pressa? - disse um aluno, e o resto da classe riu-se.
-Não, não, não! É porque somos pasto para vermes! Temos um numero limitado de Primaveras, Verões e Outonos. Um dia, por muito difícil de acreditar que possa parecer, cada um de nós vai parar de respirar, arrefecer e morrer! - Keating fez uma pausa dramática.»
O Clube dos poetas mortos
N. H. Kleinbaum

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Página-a-página #96


«-Estavam a tocar a sonata de Kreutzer, de Beethoven. Conhece o primeiro presto? Conhece? - exclamou. - Ooh... Esta sonata é uma coisa terrível. Precisamente esta parte. E a música em geral. O que é isso? Não compreendo. O que é a música? O que é que ela nos faz? E porque é que faz o que faz? Dizem que a música provoca um efeito sublime na alma... Mentira, absurdo! Provoca um efeito, um efeito terrível (estou a falar de mim), mas não sublime. Não age na alma de modo sublime nem humilhante, mas de modo excitante. Como hei-de lhe explicar? A música faz-me esquecer de mim próprio, da minha verdadeira situação, transporta-me para outro espaço qualquer que não é o meu: a música parece que me faz sentir o que na verdade não sinto, que me faz compreender o que não compreendo, parece que, com a música, posso fazer o que na verdade não posso. Explico-o assim: o efeito da música é como o do bocejo ou do riso; não tenho sono mas bocejo quando olho para alguém a bocejar; não tenho motivos de riso mas rio quando alguém rir-se. A música transfere-me de imediato para o estado de espírito do músico quando a compôs. Fundo-me na alma dele e, juntamente com ele, transporto-me de um estado para outro, mas não sei porque o faço.
(...) Por isso a música apenas excita, mas não determina.»
A Sonata de Kreutzer
Lev Tolstói

Isto é matemática #34


O 3D e a trigonometria

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014


«Ninguém avança pela vida em linha recta. Muitas vezes, não paramos nas estações indicadas no horário. Por vezes, saímos dos trilhos. Por vezes, perdemo-nos, ou levantamos voo e desaparecemos como pó. As viagens mais incríveis fazem-se às vezes sem se sair do mesmo lugar. No espaço de alguns minutos, algumas pessoas vivem aquilo que um mortal comum levaria toda a sua vida a viver. Alguns gastam um sem úmero de vidas no decurso da sua estadia cá em baixo. Alguns crescem como cogumelos, enquanto outros ficam inelutavelmente para trás, atolados no caminho. Aquilo que, momento a momento, se passa na vida de um homem é para sempre insondável. É absolutamente impossível que alguém conte a história toda, por muito limitado que seja o fragmento da nossa vida que decidamos tratar.»

Henry Miller

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Página-a-página #95


«Sendo ele um dervixe que vivia em total liberdade, parecia-lhe até ridículo que as suas palavras estivessem tão mudas, tão absolutamente presas. Talvez devesse gritar. Talvez devesse dizer tudo, e então talvez o mundo se inundasse. Badini gastaria toda a sua alma e ela transformar-se-ia em sons perdidos no ar, e o seu corpo disforme de gigante seria um balão vazio. Deveria gritar, pensava Badini, porque já ninguém sabe gritar, anda tudo calado pela vida, sem indignação. E, por vezes, essas palavras engolidas são confundidas com tolerância.
Badini sentia que os sons que nunca pronunciara estavam a matá-lo, que agora eram caroços, que agora eram bombas a rebentar, que eram letais como sempre haviam sido. Deveria voltar a ser criança, falar outra vez, gritar pelos corredores e pelas ruas, correr atrás de uma bola de críquete ou de um papagaio de papel. E coalhar o queijo de ovelha com versos ingénuos. E então talvez voltasse a sentir aquela alegria de ser leve e o medo de ser espancado. Diziam que tinha derrotado um tigre com as suas mãos, mas agora o tigre que amestrara dentro de si espetava as garras na sua garganta para subir e ser um grito.»
Para onde vão os guarda-chuvas
Afonso Cruz

Isto é matemática #33


Parte da roda que anda para trás

Página-a-página #94


«Somos mais pesados quando fechamos os olhos. Isso acontece porque o nosso mundo interior é maior do que o exterior, pensava Fazal Elahi. A nossa dor não existe fora de nós, o mundo não suportaria esse peso, seria impossível, imagine-se a dor de todos os homens a existir no mundo exterior. Seria uma calamidade e não haveria gravidade capaz de fazer os planetas andar à volta das estrelas. Nós somos muito mais pesados que o universo que nos rodeia. Temos a dor.»


Para onde vão os guarda-chuvas
Afonso Cruz

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Página-a-página #93


«-Evidentemente - anuiu o clérigo. - Rodopiava para estar com Deus e pôs os seus discipulos todos a dançar assim para também eles estarem com Deus. Mas todos os homens rodopiam. Pensam que vão a direito, como uma régua, mas andam às voltas, dão voltas a si mesmos. Tudo o que procuram é a sua cauda. (...) Toda a gente, quando viaja, não faz senão o mesmo que este cão que vê aqui a perseguir o rabo. Dá voltas pelo mundo para se ver a si e, quando não consegue, volta a tentar, viaja mais. E reafirmo: tudo o que nós, seres humanos, procuramos é a nossa própria cauda.»

Para onde vão os guarda-chuvas
Afonso Cruz

Isto é matemática #32


Tenho um logaritmo no canto do olho

Página-a-página #92

«-Como é que eu lhe explico isto? Está a ver as histórias que lhe contei de Girijashankar? Se me perguntarem o que é que prefiro que sobreviva, o meu corpo ou estas histórias, eu não hesito. Se estiver numa prisão e tiver uma escolha dessas, não penso duas vezes. Tenho de salvar as histórias, salvar as ideias. Se eu as passar a outra pessoa, se ela as amar como eu, passa a ser eu, pois as coisas que amamos confundem-se com as coisas amadas, e só os maneirismos são diferentes. As histórias sou eu, Elahi sahib, sou eu. Sacrificaria o corpo e tudo o resto. O que é tudo o resto? Esta mania que eu tenho de comer pouco? Este feitio tolerante? Isto não vale nada, absolutamente nada. Deito tudo fora para salvar ideias, e cada vez que as passo a alguém, como aquela de adoptar um filho americano, reencarno. Nós hindus, apesar de eu ser um mulçumano, reencarnamos muito. E nem precisamos de morrer para o fazer. Basta contar uma história e lá vai uma reencarnação. O que é curioso é que a alma nem sequer se gasta. Podemos fazer isto milhares de vezes seguidas e até reencarnar ao mesmo tempo em milhares de corpos. Podemos reencarnar uma revolução. Abrimos a boca e as nossas ideias alojam-se nos outros como bactérias.»


Para onde vão os guarda-chuvas
Afonso Cruz

Página-a-página #91


«-O inglês então começou a falar de guarda-chuvas, muito emocionado. Disse-me que a sua falecida mulher perdia, com alguma frequência, guarda-chuvas. Mas nunca encontrava nenhum. Para onde vão os guarda-chuvas? São como as luvas, são como uma das peúgas que formam um par. Desaparecem e ninguém sabe para onde. Nunca ninguém encontra guarda-chuvas, mas toda a gente os perde. Para onde vão as nossas memórias, a nossa infância, os nossos guarda-chuvas?, perguntava o inglês.»


Para onde vão os guarda-chuvas
Afonso Cruz

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Página-a-página #90


«Tal como Elahi, Isa  temia que a felicidade fosse apenas a maneira que o universo tem de nos fazer sofrer, um método atroz que faz com que experimentemos a saciedade e uma espécie de alegria, para depois nos retirar tudo isso, nos puxar o tapete e nos levar a uma infelicidade de efeito mais profundo. A melhor maneira de fazer uma pessoa cair é levá-la para um lugar alto, o universo sabe fazer isso muito bem, sabe levar-nos para cima das coisas para melhor nos empurrar. Não se empurra uma pessoa que está no chão, é preciso ampará-la primeiro, é preciso fazê-la subir as escadas. É preciso que a pessoa sinta vertigens. É preciso que caia de muito alto. É assim que o universo ri.
Ou seja, Isa temia quase tudo. Temia subir escadas, temia que o destino o empurrasse de lá de cima. Receava alegrias, porque as alegrias são lugares altos, os lugares mais perigosos, os lugares que fazem com que as quedas possam ser dolorosas, violentas e fatais. Badini tentava fazê-lo sorrir com a ajuda das suas palavras de mãos. Isa ria, mas sabia conter-se naquilo que punha dentro de uma gargalhada.» 


Para onde vão os guarda-chuvas
Afonso Cruz

Página-a-página #89


«As pegadas não são as marcas dos nossos pés, são as marcas das nossas paixões, das nossas obrigações, dos nossos castigos, dos nossos prazeres. São o lugar por onde andamos, e isso revela muita coisa, mais do que impressões digitais e biografias oficiais. As pegadas, por vezes, deixam pássaros atrás delas, outras mostram quem pisamos, evidenciam quem seguimos. As pegadas de Isa eram, sobretudo, os seus pés atrás de Aminah, revelando a sua enorme devoção. As de Aminah eram, sobretudo, os seus pés a afastarem-se de Isa, revelando a sua enorme vergonha.»

Para onde vão os guarda-chuvas
Afonso Cruz

Isto é matemática #31


O goleiro e a Geometria da melhor defesa

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Página-a-página #88


«Fazal Elahi observava atentamente o guitarrista, o modo como mexia os dedos, a rapidez com que eles percorriam as cordas, e pensava: Com licença, tento perceber a lógica daquela dança de dedos ao longo do braço da guitarra. De onde vêm aqueles movimentos? Um homem aprende um acorde, com a graça de Alá, pode pensar nisso e executá-lo, acho que sim, que pode, mas de onde vem a improvisação, aqueles gestos que se fazem sem que haja tempo para serem pensados? Uma pessoa pode saber tocar muitas músicas, mas de onde vem o improviso? Accha, é algo anterior à nossa decisão. Os braços mexem-se, os dedos saltam pelas cordas a uma velocidade impossível de acompanhar pela razão e não conseguimos mandar neles e dizer-lhes para irem por ali, eles têm vida própria. É como a dor, não é? É exactamente como a dor, seria bom que o mundo nos obedecesse e se ajoelhasse. Seria bom que esse mundo começasse dentro de nós, talvez aqui, no peito, aqui mesmo. Óptimo. Nós dizíamos à alma para não sofrer, para ser feliz, e era assim que nós ficaríamos, alegres, porque a alma obedecia, não era como os dedos a improvisar. Mas Alá sabe melhor.»
Para onde vão os guarda-chuvas
Afonso Cruz

Página-a-página #87

«-Ainda no outro dia - disse o americano -, dei a um miúdo um pequeno gravador de voz que usava para as entrevistas. Encontraram-no morto uns dias depois. Quem me contou foi um rapaz que presenciou o crime. Disse-me que a culpa era minha, que foi por causa do gravador. Agarrou-se às minhas roupas enquanto me dava pontapés nas canelas. Um homem que ia a passar agarrou no miúdo e empurrou-o. Ele desatou a correr e nunca mais o vi. O Bem é uma coisa muito difícil de fazer, Sr. Elahi. O Bem não é compatível com gravadores de voz. Quando não sabemos como os outros vivem, qualquer acção é perigosa. Isso deixa-nos sem saber como agir. Uma vez estive na selva, na América do Sul. Eu não podia fazer nada, não podia tocar em nada. O acto mais inocente, como tocar numa folha de árvore, poderia sentenciar a minha vida. Dar um passo poderia ser mortal. Um pequeno passo. Para os índios é fácil, sabem onde está o Bem e o Mal na selva. Para quem vem de fora é muito difícil.»

Para onde vão os guarda-chuvas
Afonso Cruz

Página-a-página #86


«- O problema, Sr. Elahi, não é Deus. O universo resume-se a uma prova da inexistência de Deus. Olhe à sua volta e veja o deserto. São os homens que tomam conta das nossas vidas. Já reparou que entre os animais é o líder que vai combater com o líder rival? Os animais não mandam os peões para debaixo dos cavalos. No reino animal, os líderes são os primeiros. Se nós fizéssemos o mesmo, os conflitos seriam substancialmente diferentes, E o mesmo princípio não seria aplicado apenas em casos de guerra, Sr Elahi, mas também em todas as vertentes da sociedade. Em todas, sem qualquer excepção. Mas o problema é que o povo é um girassol: volta-se para onde brilha a luz, de forma automática, sem razão, sem discernimento. É assim o povo e os seus líderes. Somos todos uns girassóis.»

Para onde vão os guarda-chuvas
Afonso Cruz

Isto é matemática #30


MatemátiQuê?

domingo, 12 de janeiro de 2014


"Um dia de chuva é tão belo como um dia de sol. Ambos existem; cada um é como é" 
Fernando Pessoa

Página-a-página #85

«-Introdução: Tal Azizi acreditava que a alma de todos nós está dividida em duas, uma em cima, no céu, olhe lá para cima, e outra dentro do estômago, aqui, repare, Nachiketa Mudaliar, na barriga. Era um seguidor de filosofia de yahya ibn Habash as-Suhrawardi, Alá o tenha em sua gloria, e dizia que o mundo era como a luz a cair na terra e tudo eram gradações dessa luminosidade, desde as almas aos corpos de carne e osso. A maior parte dos ensinamentos de Tal Azizi foram escritos pelo barbeiro dele, um homem chamado Gardezi de Samarcanda, um nome a decorar. Repita comigo: Gardezi de Samarcanda. Muito bem, é isso mesmo, accha. O barbeiro Gardezi escreveu que a nossa essência era, não a nossa lama, mas a nossa falta de alma. É a ausência que nos faz mexer, é esse o nosso objectivo: aquilo que nos falta. Ora, esse movimento, em termos latos, não é outra coisa senão aquilo a que vulgarmente chamamos amor. Quando desejamos ser completos, desejamos com isso ser tudo.Ao juntarmo-nos com o objecto da nossa paixão, ficamos completos, perfeitos, infinitos. Está-me a ouvir Nachiketa Mudaliar? Infinitos. Tal Azizi dizia que nós somos esse desejo, e não uma coisa parada, possível de ser descrita por palavras. Para chegar a Deus, que é absolutamente Tudo, temos de nos esvaziar e passar a ser absolutamente Nada. Só assim o absolutamente Tudo poderá ter lugar para ser absolutamente Tudo dentro de nós.»
Para onde vão os guarda-chuvas
Afonso Cruz

Página-a-página #84


«-A sua abordagem é errada, Fazal Elahi. Procura uma resposta, mas as respostas são perguntas mortas. São as perguntas que nos fazem mexer. As certezas fazem-nos parar. As perguntas são a porta da rua. Quando nos interrogamos, quando duvidamos das nossas paredes, é porque estamos a passar pela porta. O facto de nos espantarmos com o que se passa à nossa volta é sinónimo de vida. Os cemitérios estão cheios de pessoas que não se espantam com nada. A perplexidade é que faz mover o mundo. A criação foi feita através de uma pergunta e não de uma resposta. Se fosse uma resposta, uma certeza, estaríamos todos parados, ancorados na verdade, nos factos. Mas, se evoluímos, é porque andamos a erguer um ponto de interrogação como estandarte. O ponto de interrogação é a verdadeira bandeira do homem. É preciso esquecer os países, as fronteiras, as certezas. O futuro é uma pergunta. Se há um terrorismo eficaz, que valha a pena, é perguntar.»

Para onde vão os guarda-chuvas
Afonso Cruz

sábado, 11 de janeiro de 2014


Isto é matemática #29


O cubo mágico

Página-a-página #83


«Os dias que compõem a nossa vida são gerados dentro de nós, disse Tal Azizi, como uma gravidez. Quando desejamos alguma coisa que está fora do presente, quando desejamos o futuro, isso faz nascer o embrião do dias seguinte. E esse dia, ó discípulo, vai crescendo dentro de nós, alimentado pelas recordações e pelo desejo de viver, e, passadas umas horas, o dia desponta, naturalmente. E o mesmo sucederá com todos os dias que nos farão velhos. Até, ó devoto, chegar a altura em que nós, gastos, sem desejo, nos esquecermos de desejar o futuro, e o dia seguinte morrerá dentro da nossa barriga.»
Para onde vão os guarda-chuvas
Afonso Cruz

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Página-a-página #82


«Disse Tal Azizi: os nossos corpos têm veias para fora deles. Escuta, amado discípulo, essas veias ligam-se a lugares especiais, a pessoas de que gostamos. Um aparelho circulatório que não é ensinado nas aulas de anatomia, que não se aprende nas madrasas nem nas universidades. O nosso coração não bate cá dentro, bate na terra de que gostamos, ó discípulo, nos objectos que nos são especiais, nos peitos dos nossos familiares, em músicas que nos fazem chorar. Nunca ninguém nos ensinou onde estava realmente o coração, aquilo que ouvimos bater no peito é apenas um reflexo de todos os nossos corações, que batem em tantos lugares diferentes. As nossas noções de anatomia, amado Gardezi, estão todas erradas.»

Para onde vão os guarda-chuvas
Afonso Cruz

Tiago Bettencourt - Canção de Engate



quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Uma boa história nunca acaba #70


«A verdade é que sei que não viajo através do tempo, de todo. Nem mesmo um dia. Só tento viver cada dia como se tivesse voltado deliberadamente a este dia para o desfrutar como se fosse o último dia da minha extraordinária e ordinária vida. Estamos todos a viajar juntos no tempo todos os dias das nossas vidas. Tudo o que podemos fazer é dar o nosso melhor para aproveitar esta extraordinária viagem.»

About time (2013). Drama. Fantasia. Romance. Aos 21 anos, Tim descobre que consegue viajar no tempo… Ele não pode mudar a história, mas consegue alterar o que aconteceu na sua própria vida. Decide então tornar o seu mundo um lugar melhor… arranjando uma namorada. Infelizmente, esse feito tornou-se mais complicado do que previa. Conforme a sua vida progride, Tim descobre que a sua habilidade única não o pode salvar das mágoas, amores e dissabores que afetam todas as famílias, em todo o lado. São grandes os limites para o que se consegue com as viagens no tempo, assim como os perigos. Este pode parecer mais um daqueles filmes de domingo à tarde mas na verdade é feito de bom humor, de realismo, apesar da ficção, e claro, de um bom romance. É mais um daqueles filmes que nos fazem dar valor à vida bem como às pequenas coisas do nosso quotidiano. Surpreendentemente muito bom!

Página-a-página #81


«Houve uns segundos, talvez no singular, em que a cara de uma criança olhou para a cara de um soldado: opostos, completamente opostos. Todo o universo parou nessa altura, meio criança, meio soldado. Depois ouviu-se uma arma e o fim do mundo aconteceu. O soldado ganhou a guerra contra uma criança, como aliás acontece quase sempre; as crianças perdem tudo, até a juventude. Perdem guerras, perdem inocência, perdem pureza, perdem o cheiro a bebé. O Mal venceu com todas as armas que tem e o Bem perdeu com todas as armas que não tem. Foi assim que Fazal Elahi viu o filho morrer. Com uma bala do destino, do acaso, mas também do injustificável, de duas cebolas e de uma astrologia pouco benevolente.»
Para onde vão os guarda-chuvas
Afonso Cruz

Isto é matemática #28


Dentro das quatro (ou mais) linhas

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Página-a-página #80


«213. Faremos com que a coisa mais simples seja a mais complicada de fazer.
Badini disse que as coisas mortas vão com a água, naturalmente, seguem a corrente do rio, é isso que fazem os paus, as pedras, as folhas, os cadáveres, todos são empurrados para a foz, todos eles, enquanto os sábios e os salmões procuram a nascente, as causas das coisas, e, assim tudo o que contraria a corrente está vivo, e a educação também é isso, é ir contra tantas coisas, não nos deixarmos arrastar para  não nos tornarmos um pau seco a boiar nas águas.
250. Os rios são mais longos se navegam contra a corrente.
-Mas, primo, não será um procedimento sábio dos mais sábios de todos, seguir a natureza das coisas em vez de forçar, não passar a vida em guerra com tudo o que nos rodeia? Deveria ser fácil, tudo deveria ser fácil, mas que sei eu?»


Para onde vão os guarda-chuvas
Afonso Cruz

Página-a-página #79


«-Como não falas, ouves mais. Isso é que faz a sabedoria. Os homens deviam ser mudos até certa altura e depois rebentavam. Seria uma coisa ensurdecedora. Um homem a explodir toda a sabedoria que havia acumulado durante uma vida.
(...)
543. Para que os homens dessem as mãos, Nós fizemos-lhes os braços; e eles usam-nos para bater. Para que os homens caminhassem, Nós demos-lhes as pernas e os pés; e eles usam-nos para pisar.»
Para onde vão os guarda-chuvas
Afonso Cruz

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014


Génios de Inglaterra #3



« O Homem de Vitrúvio! », exclamou Langdon. O conservador Sauniére criara com o seu corpo um réplica em tamanho natural do mais célebre desenho de Leonardo Da Vinci. Á volta tinha descrito um circulo. No seu próprio estômago, desenhara a sangue uma estrela de cinco pontas. 
(...) Leonardo seguiu as indicações do arquitecto romano Marcus Vitruvius Pollio, conhecido como Vitrúvio. Na sua obra 'Os Dez livros de Arquitectura', descreve as proporções ideais entre as diversas partes do corpo humano.
«O pé é a sexta parte da altura do corpo e o cotovelo a quarta parte» 

domingo, 5 de janeiro de 2014

Página-a-página #78


«Os pássaros dos poemas
voam mais alto.
-Está aqui a máquina de fazer milagres - disse o pai de Badini, apontando para a máquina coberta pela toalha.
(...) Salam-ud-din pensou que talvez o homem tivesse feito aquilo com algum sentido alegórico: colocar comida, aquilo que nos é essencial, por cima da máquina de fazer milagres. Sem pão não se fazem maravilhas. Só quando o pão se torna um bem adquirido, o homem começa a pensar no que é belo. O estômago incha e a poesia nasce do umbigo.
75. Disse o profeta: se tiver dois pães, troco um por uma flor
Para onde vão os guarda-chuvas
Afonso Cruz

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014


Página-a-página #77

«57. Quanto menor é a alma de um homem mais espaço ela ocupa. Não há espaço para ninguém ao seu lado.
Ninguém se senta ao lado do mulá ou de Vassilyevitch Krupin sem se  sentir apertado.
-Tens de dar uma cereja ao teu primo para ele voltar a falar - disse o general.
-Com a graça de Alá, ele fala - respondeu Elahi.
-Sim, mas só com as mãos.
-As mãos é que fazem coisas, não é a voz, pelo menos eu acho que não é a voz, não posso ter a certeza, que certezas só Alá é que tem. Quando é preciso descascar uma banana, usamos as mãos e não o som, não serve para nada o som. Não é assim, general Krupin? Não me olhe assim, estou a ser sincero, desculpe. O meu querido primo, gosto dele como meu irmão, em tudo o que faz está a falar, pois todos os seus gestos são palavras. Achha, não há diferença entre a voz e o acto, como acontece tão frequentemente por aí, basta olhar para aquele ministro, como é que se chama? Não me lembro, adiante, que alá os castigue, dizem que fazem e depois não fazem, ou pior, cometem desgraças, umas atrás das outras. O meu primo, que é para mim um irmão, talvez mais do que um irmão, eu nunca tive um irmão homem, não posso saber, mas adiante, quando o meu primo descasca uma fruta, não a descasca simplesmente, como nós fazemos, quando usa a faca está a falar com as maçãs e as mangas e os marmelos, porque as suas mãos são frases, são discursos.
O general Ilia Vassilyevitch Krupin fez um gesto de enfado e disse:
-Em todo o caso, devia comer uma cereja.
-Com licença, general, o meu primo, todos os anos visita a cerejeira de Tal Azizi, que árvore bonita, que milagre. Deita-se debaixo dela, mas diz que aquela árvore é como toda a religião: só nos impede de ver o céu.»
Para onde vão os guarda-chuvas
Afonso Cruz

Isto é matemática #27


Como guardar ovos

Uma boa história nunca acaba #69


«Tudo tem um propósito. Até as máquinas. Os relógios dizem as horas, os comboios transportam pessoas... Todos fazem o que devem fazer. É por isso que as máquinas quebradas me deixam triste. Não podem fazer o que devem. Talvez seja igual com as pessoas. Se perdes o teu propósito, é como se estivesses partida...»

Hugo (2011). Aventura. Drama. Familiar. Martin Scorsese. Uma história mágica do inicio ao fim que nos leva a conhecer a vida de Hugo Cabret. Hugo, tal como o seu pai, gosta de consertar máquinas e dar-lhes nova vida. Vive nos segredos de uma estação de comboios de Paris, onde conserta os relógios e onde permanece escondido após ficar órfão. Com a ajuda de uma rapariga excêntrica, ele procura a resposta para uma misteriosa ligação entre o pai que perdeu recentemente, o mal-humorado dono da loja de brinquedos que vive por baixo dele e uma fechadura em forma de coração, aparentemente, sem chave.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014


Página-a-página #76


«-Os telescópios - disse Elahi - não servem para aumentar as estrelas, mas para diminuir o ser humano. São máquinas de nos fazer pequenos. 
-As estrelas somos nós, disse Fazal Elahi. Quando Alá nos observa, é como quando nós olhamos para o céu: o que Ele vê são luzes. Cada homem é uma vela a brilhar no escuro, disse Tal Azizi, é assim Ele consegue ler à noite. 
-Que tolice, primo. As estrelas são coisas lá em cima.
 O mudo não respondeu, mas inclinou a cabeça para a esquerda e sacudiu uma formiga da perna.
 Fazal Elahi pensava no equilíbrio do mundo, que era uma equação extremamente desequilibrada, mas que, apesar disso, exigia uma espécie de harmonia. Se um homem fala, entra-lhe silêncio pela boca, e se conquistou alguma felicidade pode esperar grandes tragédias.
 Fazal Elahi não erraria na sua premonição, o universo gosta de equilibrios completamente desequilibrados, é feito de opostos de mãos dadas, um homem enorme a segurar a mão de uma menina pequenina. E, no caso de Elahi, esse equilibrio absurdamente/moralmente/esteticamente desequilibrado foi conseguido a prestações.»


Para onde vão os guarda-chuvas
Afonso Cruz

Isto é matemática #26


O homem que fez a sua própria sorte

Janeiro #2

Escuta-me... Sei que nem sempre é fácil, mas escuta-me! É um velho que to pede. Ouve o peso da idade que carrego na minha voz. Vamos jogar à verdade...
Abre os braços e sente a brisa! Que sentes? A brisa. Exacto! Fecha os olhos e vê o infinito! Que vês? O infinito. Correcto. Agora respira fundo, enche o coração de frescura e corre... Não irei perguntar o que vês nem o que sentes, ainda estás na partida do início. Calçaste as botas da vida, avança! Caminha e descobre! Vive!
Lembra-te: em cada brisa sentes uma brisa e em cada infinito vês um infinito. Nada mais... Não disfarces a liberdade de brisa ou o sonho de infinito. Respira fundo, enche o coração de frescura e corre à procura dessa tua liberdade e do teu mais profundo sonho. Encontra-os a eles próprios! Somente liberdade e sonho. Sonho e liberdade...
Sou velho. Nem sempre a minha memória sabe do que fala. E por vezes tenho dúvidas de eu próprio saber do que falo. Os cabelos brancos e as barbas longas carregam consigo também a amargura de uma vida que prometeu ser melhor. Talvez não tenhas que ouvir nada do que te digo, ou penso que digo. Mas eu necessito de o dizer. Para que mais não seja redimir-me perante mim próprio de não ter respirado fundo, enchido o coração de frescura e corrido!

Menina, ouve este velho que já viveu os anos que por aí vêm...

Alexandra Oliveira Villar

Um desafio por mês #14