sexta-feira, 27 de junho de 2014

Página-a-página #138

«-Sabe, senhora dona, diz o Almada Negreiros que só o mistério chega inteiro ao fim. Nem a vontade, nem a saudade, nem o amor poderão dizer o mesmo. Também a vida assim o é, sê-la-á até deixar de o ser. E ei-la, distinta do mistério inteiro e do amor e da saudade imperfeitos, embora resiliente ante a intempérie da existência humana.
-Desculpe, mas creio não estar a acompanhá-lo.
-Há uma incompletude no ser, que raramente é assomada: o tudo querer viver e o tudo crer poder ter vivido é próprio de quem quer pôr prateleiras na vontade e na acção, que quer ser capaz de viver todas as coisas com toda a sua existência, com toda a memória e na posse de todos os sentidos como nunca os teremos conscientemente. Talvez até imaginemos as coisas, todas as coisas, sem a inevitabilidade dos problemas, contanto sejam tão certos como o crepitar da folhagem no outono. Ou mais concomitante ainda: com a certeza da resolução passiva ou ativa de todos eles, os problemas.
Mais um gole de absinto.
-Resta-nos o brio de querer estar acima de nós mesmos, como se nos pudéssemos manipular e dominar como uma marioneta.
Nas reticências de Campos que foi Pessoa, não houve prateleiras nem consequência na vontade, há a memória do que somos em conflito com a memória do que queremos ser. Diz uma velha canção que as reticências são para colocar entre parênteses como se fossem silêncio ricocheteando entre têmporas.


E com esta imagem de qualquer outro poeta fecho a secretária e o poema...
Como um deus, não arrumei nem uma coisa nem outra...»


A Persistência da memória
Daniel Oliveira

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