sexta-feira, 27 de junho de 2014

Página-a-página #137

«-As deduções primárias são sempre moldadas por quem somos. Um poeta julgará que vê sempre o motivo da acção, o escultor verá primeiro a acção e dali a alma. A senhora dona, ao procurar identificação com as palavras, julga ter visto nelas um pouco de si ou dos seus.
-Ainda que primária, qual é a sua dedução, excelentíssimo Fernando?
-A adjectivação da senhora dona estiola a relevância do conhecimento que das 'Reticências' detenho no fundo do meu ser - refletiu, com a cabeça comprimida entre as mãos. - Pleonásticos o ser e a memória. (...) Pois bem, como saberá, arrumar a vida não é empreitada de fácil monta. Disciplinar rigorosamente o que se pode fazer do que se quer fazer e até do que se deve. Estes conceitos definem toda a nossa existência e por isso, apesar de se vestirem de fáceis palavras, complexos se tornam na execução - declarou Pessoa, engolindo sem esforço mais um trago de absinto.
- A saudade hipoteca o futuro. De cada vez que a saudade nos vence há sempre um pedaço de futuro que se perde, que já aconteceu. Não é possível trazer o passado roubado na algibeira da vida.
(...) - Amar tudo o que foi, mesmo tudo o que já não é, eis a silhueta da saudade.
-E amar tudo o que é, tudo o que vai ser e não saber se tudo o que vai ser chegará a sê-lo. Chegaremos a tempo a tudo o que vai ser? Não será essa uma angustia sem o desígnio da saudade? - Interrompi. Senti a ausência do poeta que, esboçando um sorriso, continuou.
-A inconsequência da avidez não deve desmerecer o propósito de saciá-la.»


A Persistência da memória
Daniel Oliveira

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