sábado, 19 de dezembro de 2015

Página-a-página #224

«No passado, quando era mais jovem, acreditara que conseguiria vir a ser qualquer coisa diferente de mim mesmo. Inclusivamente, pensara que poderia abrir um bar em Casablanca e conhecer Ingrid Bergman. Ou também, numa atitude mais realista - e deixando de lado se, de facto, era ou não mais realista -, acreditara que poderia levar uma vida mais proveitosa e mais de acordo com a minha própria personalidade. Chegara mesmo a treinar para me transformar interiormente com esse objectivo. Lera The Greening of America, vira três vezes Easy Rider. Mas, apesar de tudo isto, acabava sempre a regressar ao mesmo sítio, como um barco com o leme torcido. Era o "meu eu". O "meu eu" não ia a lado nenhum. O "meu eu" estava aqui, à espera de que eu regressasse.
Seria preciso chamar a isto desespero?
Não sabia. Talvez fosse desespero. Turguéniev talvez lhe chamasse desencanto. Dostoiévski, talvez inferno. Somerset Maugham talvez escolhesse chamar-lhe realidade. Mas, usassem o termo que usasse, este era eu.
Não conseguia imaginar o mundo da imortalidade. Talvez aí pudesse recuperar as coisas que havia perdido e criar um mundo novo. Talvez existisse lá alguém que me aplaudisse, me felicitasse. E talvez tivesse sorte e conseguisse ter uma vida mais proveitosa, mais de acordo com a minha personalidade. De qualquer forma, seria um outro eu, um eu que nada teria que ver comigo. O meu eu de agora tinha o meu próprio ego. Era um facto histórico, algo que ninguém conseguia alterar.»

O ímpiedoso país das maravilhas e o fim do mundo
Haruki Murakami

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