Estávamos os dois, como acontecia muitas vezes, nas escadinhas que partiam do centro da Ponte Velha e iam dar à ilhota, entretidos a seguir com os olhos a corrente. A Lua pálida e fria, reduzida a uma pequena lasca, reflectia-se temerosa nas águas do Rio. (...)
Que estranho, pensei. As pessoas associam o coração ao calor. Mas não há relação nenhuma entre o coração e o calor do corpo.
-Não, não é bem assim -respondi-lhe. -Se não te abro o meu coração, é um problema exclusivamente meu. Tu não tens culpa. Acontece que eu não estou seguro dos meus sentimentos, daí que me sinta confuso.
-Nesse caso, nem sequer estás em condições de perceber muito bem o que é o coração?
-Nem sempre consigo compreendê-lo, é certo -admiti. -Há alturas em que só percebemos o que nos vai na alma muito depois, quando já é demasiado tarde. Na maioria dos casos, as pessoas têm de tomar decisões e vêm-se obrigadas a agir sem estar seguras dos seus sentimentos, e isso deixa-nos desorientados, a nós e aos outros.
-Como é que o coração pode ser uma coisa tão imperfeita? -atirou-me ela, sorrindo.
Tirei as mãos dos bolsos e contemplei-as à luz da Lua. Banhadas por aquela tonalidade leitosa, pareciam um par de estátuas desproporcionadas, em miniatura.
-Também é essa a minha opinião -declarei. -O coração é algo de muito imperfeito. Mas deixa vestígios, e nós podemos seguir esses vestígios, como se fossem pegadas na neve.
-E onde conduzem essas pegadas?
-A nós mesmos -respondi. -O coração é assim. Sem coração não chegas a lado nenhum.
Levantei a cabeça e olhei para cima. A Lua de inverno flutuava no céu da Cidade cercada pela alta Muralha, emitindo uma luz exageradamente brilhante, quase incongroente.
-Tu não tens culpa de nada -repeti, em jeito de consolação.»
O Impíedoso país das maravilhas e o fim do mundo
Haruki Murakami
Sem comentários:
Enviar um comentário