-Tu não tens grandes sentimentos pelas outras pessoas, pois não?
Fiquei para morrer. -Do que é que tu estás a falar? -disse eu. - Claro que tenho.
-Terás mesmo? -Franziu o sombrolho. -Não me parece. Mas não importa -disse ele, após uma pausa longa e tensa. - Eu também não.
-Onde é que tu estás a querer chegar?
Ele encolheu os ombros. -Nada - disse ele. -Só que a minha vida, no essêncial, tem sido muito insípida e sem graça. Morta, quero eu dizer. O mundo sempre me pareceu um lugar vazio. Dantes, era incapaz de gozar mesmo as coisas mais simples. Sentia-me morto em tudo o que fazia. -Escovou a terra das mãos. - Até que tudo mudou. - Disse ele. - Na noite em que matei aquele homem.
Eu estava atónito -e nem um tanto arrepiado, devo dizer -perante uma alusão tão clamorosa a algo que, por mútuo acordo, praticamente nunca era referido senão por códigos, deixas e eufemismos de toda a espécie.
-Foi a noite mais importante da minha vida -disse ele calmamente. -Permitiu-me realizar aquele que sempre foi o meu maior desejo.
-Que é?
-Viver sem pensar.
As abelhas zumbiam ruidosamente na roseira. Ele voltou à sua tarefa, adelgaçando os ramos mais pequenos no topo.
-Dantes, estava paralisado, embora não o soubesse verdadeiramente - disse ele. -Era por pensar de mais, por viver demasiado com o intelecto. Era difícil tomar decisões. Sentia-me imobilizado.
-E agora?
-Agora - disse ele -, agora, sei que posso fazer qualquer coisa que queira. -Olhou para cima. -E, ou eu me engano muito, ou algo de muito parecido se passou contigo.
-Não sei do que é que estás a falar.
-Oh, pois eu acho que tu sabes muito bem. Esse surto de poder e deleite, de confiança, de controlo. Essa sensação súbita da riqueza do mundo. Das suas possibilidades infinitas.
(...)»
A História secreta
Donna Tartt
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