quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Página-a-página #216

«(...)A intensidade do seu olhar assustou-me. - O quê?
-Tu não tens grandes sentimentos pelas outras pessoas, pois não?
Fiquei para morrer. -Do que é que tu estás a falar? -disse eu. - Claro que tenho.
-Terás mesmo? -Franziu o sombrolho. -Não me parece. Mas não importa -disse ele, após uma pausa longa e tensa. - Eu também não.
-Onde é que tu estás a querer chegar?
Ele encolheu os ombros. -Nada - disse ele. -Só que a minha vida, no essêncial, tem sido muito insípida e sem graça. Morta, quero eu dizer. O mundo sempre me pareceu um lugar vazio. Dantes, era incapaz de gozar mesmo as coisas mais simples. Sentia-me morto em tudo o que fazia. -Escovou a terra das mãos. - Até que tudo mudou. - Disse ele. - Na noite em que matei aquele homem.
Eu estava atónito -e nem um tanto arrepiado, devo dizer -perante uma alusão tão clamorosa a algo que, por mútuo acordo, praticamente nunca era referido senão por códigos, deixas e eufemismos de toda a espécie.
-Foi a noite mais importante da minha vida -disse ele calmamente. -Permitiu-me realizar aquele que sempre foi o meu maior desejo.
-Que é?
-Viver sem pensar.
As abelhas zumbiam ruidosamente na roseira. Ele voltou à sua tarefa, adelgaçando os ramos mais pequenos no topo.
-Dantes, estava paralisado, embora não o soubesse verdadeiramente - disse ele. -Era por pensar de mais, por viver demasiado com o intelecto. Era difícil tomar decisões. Sentia-me imobilizado.
-E agora?
-Agora - disse ele -, agora, sei que posso fazer qualquer coisa que queira. -Olhou para cima. -E, ou eu me engano muito, ou algo de muito parecido se passou contigo.
-Não sei do que é que estás a falar.
-Oh, pois eu acho que tu sabes muito bem. Esse surto de poder e deleite, de confiança, de controlo. Essa sensação súbita da riqueza do mundo. Das suas possibilidades infinitas.
(...)»
A História secreta
Donna Tartt

terça-feira, 27 de outubro de 2015

Uma boa história nunca acaba #135


The intern (2015). Comédia. De Niro é Ben Whittaker, um viúvo de 70 anos que descobre que a reforma não é exatamente o que imaginava e decide, por isso, voltar ao ativo tornando-se um estagiário sénior num site de moda online, fundado e dirigido por Jules Ostin. Este filme que está actualmente nos cinemas é uma lufada de ar fresco! Mostra-nos, com humor, que o importante na vida é nunca estar parado e lutar pelo nosso lugar na sociedade, não importando a idade que temos. Este blog aconselha!

domingo, 25 de outubro de 2015

Divulgando #36


Couchsurfing é um serviço de hospitalidade com base na internet, em que pessoas de diversos países disponibilizam as suas casas para hospedar turistas estrangeiros. O objectivo é consturir um mundo melhor onde os couchsurfers partilham as suas experiências com as pessoas que encontram, promovendo o intercâmbio cultural e respeito mútuo. Neste momento a comunidade conta com mais de dez milhões de membros em mais de 200.000 cidades. O projecto teve inicio em 2004 e surgiu de uma paixão partilhada por um grupo de estudantes da Islândia e é hoje acessivel a qualquer pessao em qualquer parte do mundo. Para mais informações cliquem no link acima.

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Página-a-página #215

«Em certo sentido, era por isso que eu me sentia tão próximo dos meus colegas na aula de Grego. Tal como eu, também eles conheciam esta paisagem maravilhosa e cruciante, há seculos desaparecida; também eles sabiam o que era erguermos os olhos dos nossos livros do século V, e acharmos este mundo estranho desconcertante, como se já não fosse o nosso. Era por isso que eu admirava Julian, e Henry em particular. A sua razão, os seus olhos e ouvidos estavam irremediavelmente fixados nos limites desses ritmos antigos e austeros - de resto, não era no mundo que moravam, pelo menos no mundo como eu o conhecia - e longe de serem visitantes ocasionais desta terra que próprio apenas conhecia como um turista deslumbrado, eles eram, em grande medida, seus residentes permanentes, tão permanentes como lhes era humanamente possível. O grego é uma língua difícil, muito difícil, que se pode estudar uma vida inteira sem jamais se conseguir dizer o que quer que seja; mas ainda hoje não consigo deixar de sorrir ao pensar no inglês formal e calculado de Henry, o inglês de um estrangeiro cultivado, quando comparado com a fluÊncia e determinação do seu grego - eloquente, escorreito, notavelmente espirituoso. Era sempre um assombro ouvi-lo a conversar em grego com Julian, a discutir e a gracejar, como nunca os ouvi a falar em inglês; por diversas vezes, ouvi Henry atender o telefone com um "Alô", cauteloso e impaciente, e nunca me hei-de esquecer do comprazimento áspero e irresistivel do seu "Khairei!" sempre que sucedia estar Julian do outro lado da linha.»
A História secreta
Donna Tartt

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Uma boa história nunca acaba #134


'71 (2014). Acção. Drama. Thriller. Gary Hook, um jovem soldado britânico, é acidentalmente abandonado pela sua unidade na sequência de uma intervenção a um motim nas ruas de Belfast. Incapaz de distinguir amigo de inimigo, e cada vez mais prudente face aos seus próprios camaradas, o inexperiente recruta é obrigado a sobreviver sozinho, durante a noite, e encontrar o seu caminho de regresso à segurança, através de um ambiente totalmente hostil e mortal. Este filme pode ser visto actualmente em exibição nos cinemas. Julgo que seja um bom filme para quem gostar do género.

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Página-a-página #214

«A beleza é o terror. Tudo o que achamos belo faz-nos estremecer. E o que haverá de mais aterrador e de belo, para almas como as gregas e as nossas, do que perder totalmente o controlo? Livrarmo-nos dos grilhões do ser por instantes, estrilhaçarmos o acidente do nosso eu mortal? Eurípides fala-nos das Ménades: cabeça atirada para trás, garganta para as estrelas, "mais cervinas do que humanas". Ser-se completamente livre! Claro que uma pessoa é perfeitamente capaz de libertar estas paixões de maneiras mais vulgares e menos eficientes. Mas quanta glória em libertá-las de uma rajada só! Cantar, gritar, dançarmos descalços na floresta a meio da noite, tão cientes da nossa mortalidade como um animal selvagem! Estes são mistérios poderosos. O mugir dos bois. Fontes de mel brotando do chão. Se formos suficientemente fortes nas nossas almas podemos rasgar o véu e olhar de frente para essa beleza nua e terrível; deixar que Deus nos consuma, nos devore, nos desmembre os ossos. Para nos cuspir renascidos cá para fora.»
A História Secreta
Donna Tartt

domingo, 18 de outubro de 2015

Divulgando #35

Wwoof  é um programa de intercâmbio; Em troca da ajuda de voluntários, os WWOOF anfitriões oferecem alimentação, alojamento e oportunidades de aprender sobre estilos de vida orgânicos. Os voluntários terão a oportunidade de obter experiências em primeira mão em diversas filosofias de agricultura biológica, permacultura, construção ecológica e outras técnicas amigas do ambiente. As organizações WWOOF ligam as pessoas que querem voluntariar-se em fazendas orgânicas ou pequenas propriedades com as pessoas que estão à procura de ajuda voluntária. É uma excelente forma de viajar e conhecer outros países de uma maneira pouco convencional. Dêm uma vista de olhos no link para mais informações.

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Página-a-página #213

«-Porque é que essa vozinha obstinada dentro das nossas cabeças nos atormenta dessa maneira? - disse ele, olhando à volta da mesa. - Não será por nos recordar que estamos vivos, a nossa mortalidade, as nossas almas individuais - a que, ao fim e ao cabo, temos demasiado medo de renunciar e no entanto são o nosso maior motivo de sofrimento? Mas não é muitas vezes a dor também uma forma priveligiada de tomarmos consciência do nosso próprio eu? É uma descoberta terrivel a que fazemos em crianças ao verificarmos que somos uma parte separada do resto do mundo, que nada nem ninguém dói juntamente com a nossa boca escaldada ou joelhos esfolados, que as nossas dores e sofrimentos são só nossos. Mais terrível ainda é constatar, à medida que envelhecemos, que ninguém, por mais querido que nos seja, poderá alguma vez compreender-nos verdadeiramente.»
A História Secreta
Donna Tartt

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Página-a-página #212

«-Que estúpida fui, Manuel!
-Não é estupidez, Maya, a isso se chama apaixonar-se pelo amor.
-Como?
-O Daniel é alguém que conheces muito mal. Estás é apaixonada pela euforia que ele provoca em ti.
-Esta euforia é a única coisa que me importa, Manuel. Não posso viver sem o Daniel.
-É claro que podes viver sem ele. Este jovem foi a chave para te abrir o coração. Ser viciado no amor não te arruinará a saúde ou a vida, como o crack ou a vodka, mas tens de aprender a distinguir entre o objecto amoroso, nete caso Daniel, e a excitação de ter o coração aberto.
-Repete lá isso, homem, estás a falar como os terapeutas do Oregon.
-Sabes que passei metade da minha vida com o coração fechado a sete chaves, Maya. Agora começo a abrir-me, mas não posso escolher os sentimentos, pela mesma abertura que entra o amor, desliza o medo. O que te quero dizer é que, se és capaz de amar muito, também vais sofrer muito.»
O caderno de Maya
Isabel Allende

sábado, 10 de outubro de 2015

Uma boa história nunca acaba #133


A walk in the woods (2015). Aventura. Drama. Cromédia. Nesta divertida aventura, o célebre escritor de viagens Bill Bryson, em vez de aproveitar para desfrutar a companhia da sua bela e amorosa esposa e da sua grande e feliz família, desafia-se a fazer o Trilho dos Apalaches – 3 540 kms das mais intocadas, espetaculares e acidentadas paisagens da América, que liga a Geórgia ao Maine. A paz e tranquilidade que esperava encontrar não passa, no entanto, de um sonho, desde o momento em que a única pessoa disposta a acompanhá-lo na caminhada é Katz, um amigo afastado e de longa data e um namorador em série, que depois de uma vida a enganar meio mundo vê na viagem uma forma de escapar a pagar algumas dívidas - e ter uma última aventura antes que seja tarde demais. Este é mais um filme para os amantes da aventura. Pessoalmente estava à espera de mais e portanto desiludiu-me um bocadinho mas não deixa de ser uma hora bem passada! Este blog aconselha! 

terça-feira, 6 de outubro de 2015

Página-a-página #211

«Dizem que ao fim de uns meses a viver na rua se acaba definitivamente marginalizado, porque se adquirem traços de indigente, perdemos a identidade e a rede social. No meu caso foi mais rápido, bastaram três semanas para ir ao fundo. Submergi-me com uma pavorosa rapidez nesta dimensão miserável, violenta, sórdida, que existe paralela à vida normal de uma cidade, um mundo de delinquentes e das suas vítimas, de loucos e de toxicodependentes, um mundo se solidariedade ou compaixão, onde se sobrevive pisando os outros. Estava sempre drogada ou à procura de meios para o estar, suja, malcheirosa e desgrenhada, cada vez mais enlouquecida e doente. 
(...) Aprendi que os lugares mais seguros eram à vista de todos, mendigando com um copo de papel na rua à entrada de um centro comercial ou de uma igreja, o que disparava o sentido de culpa dos transeuntes. Alguns deixavam cair algumas moedas, mas ninguém falava comigo, a pobreza de hoje é como a lepra de antes, repugna e dá medo.»
O Caderno de Maya
Isabel Allende

domingo, 4 de outubro de 2015

Uma boa história nunca acaba #132


The Martian (2015). Acção. Aventura. Ficção científica. Durante uma missão tripulada a Marte, o astronauta Mark Watney e os seus companheiros são violentamente arrastados por uma tempestade de areia. Devido a este incidente, a missão é abortada e Mark, que todos julgam morto, é deixado para trás. Mas Watney sobreviveu. Encontra-se sozinho e sem saber o que fazer em Marte. Com mantimentos para apenas 50 dias, vai ter de encontrar uma forma de enviar um pedido de socorro à Terra e, simultaneamente, arranjar uma maneira de fazer crescer alimentos que o ajudem a sobreviver o máximo de tempo naquele planeta hostil. Quando, sem que alguém esperasse, o seu apelo é recebido pela NASA, a milhões de quilómetros de distância, cientistas de todo o mundo juntam-se para o tentarem trazer de volta. Quando todos concluem que nada há que possa ser feito, os seus colegas de tripulação decidem desobedecer às ordens e arriscar uma ousada missão de resgate… Baseado no best-seller de Andy Weir esta história reflete sobre o instinto de sobrevivência e generosidade humana. Neste momento em exibição nos cinemas, este blog aconselha!


quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Outubro #23

Recolho-me em mim como se voltasse à casa que me viu nascer. É como sair deste mundo para regressar à vitalidade da própria vida. Voltar a ser o que já fui sem me lembrar de o ter sido. A inocência da ignorância. A força do futuro por ser.
Recolho-me em mim como se voltasse ao calor do ventre da minha mãe. O berço mais profundo da existência. A casa. O mar. Voltar a ser o primórdio da espécie, rasurando os caminhos rectos que percorri, que é em tortuosidade que o mundo cresce.
Recolho-me em mim para voltar a ser a potencialidade do sonho que não se concretizou ainda. É na origem que o sonho ganha raiz e dá razão à existência. Viver é perder a razão. Será sempre o perder do sonho.
Recolho-me em mim como se negasse o presente que me atormenta. Eu sou passado quando sou verdade, mas vivo cada dia num presente inconsistente. O passado é feito de sonho, o presente segura-se no vazio.

Recolher-me-ei sempre em mim enquanto não o souber viver.

Alexandra Oliveira Villar

Um desafio por mês #35