«-Explique-me, então, a vida, senhor Helveg.
-Um rio, Kevin, está ao mesmo tempo na nascente e na foz. A vida também é assim, mas nós imaginamos que é um barco a descer o rio, um humilde pescador que por vezes tenta remar contra a corrente, mas é impossível vencê-la. Porém, nós somos o rio, que imagem tão gasta, Kevin, mas deve ser isso que somos. Ao mesmo tempo na nascente e na foz, moribundos e nascituros ao mesmo tempo, no útero e enterrados ao mesmo tempo, e no entanto sempre diferentes de nós mesmos, porque a água é sempre outra, a nascente está sempre a mudar, o nosso passado também, o nosso destino também, somos esta imagem tão gasta pelos poetas, pelos cantores, é isso mesmo, Kevin, uma alegoria velha, somos o tal rio, o tal lugar-comum. E agora, se não te importas, deixa-me remar contra a corrente, ainda que seja absolutamente inútil, mas que importa? Muitos dos nossos gestos mais épicos são tentativas infantis e vãs de contrariar o deprimente fado que Deus assobia e que é a nossa vida. Se não te importas, deixa-me remar contra a corrente.»
Flores
Afonso Cruz
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