segunda-feira, 9 de maio de 2016

Página-a-página #154

«A poesia, diz-me ele, transfigura o universo e faz emergir a realidade descrita com a absoluta precisão da ambiguidade. Nunca li um bom verso que não voasse da página em que foi escrito. A poesia é um dedo espetado na realidade.
Um poeta é como quem sai do banho e passa a mão pelo espelho embaciado para descobrir o seu próprio rosto.
Era isto que ele me dizia. Eu limpava os espelhos na esperança de me sentir assim, tentava desembaciar a vida, como o poeta dizia que tínhamos de fazer, passar a mão pela realidade até vermos um sorriso. Sei que é um trabalho árduo, há demasiado vapor a tornar a vida pouco nítida, desfocada. Mas vou insistir.
O poeta dizia que os versos libertam as coisas. Que quando percebemos a poesia de uma pedra, libertamos a pedra da sua "pedridade". Salvamos tudo com a beleza. Salvamos tudo com poemas. Olhamos para um ramo morto e ele floresce. Estava apenas esquecido de quem era. Temos de libertar as coisas. Isso é um grande trabalho. Sei que muitas mudanças na minha vida aconteceram graças a ele.»


Vamos comprar um poeta
Afonso Cruz

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