domingo, 8 de novembro de 2015

Página-a-página #217

«De mil experiências que fazemos apenas conseguimos transpor uma para a linguagem, e mesmo essa de uma forma fortuita e sem o apuro que merecia. Entre todas as experiências mudas, permanecem invariavelmente ocultas aquelas que, imperceptivelmente, transmitem à nossa vida a sua forma, o seu colorido e a sua melodia. Quando depois nos viramos para esses tesouros, como uma espécie de arqueólogos da alma, descobrimos quão desconcertantes eles são. O objecto da observação recusa a imobilidade, as palavras deslizam para fora da vivência e no final o que temos no papel não passa de um espólio de contradições. Durante muito tempo acreditei que isso era um defeito, uma carência que precisava de serultrapassada. Hoje penso que as coisas não se passam assim: que o reconhecimento de tamanho desconcerto acaba por ser a via régia para a compreensão dessas experiências, simultaneamente íntimas e, não obstante, tão enigmáticas. Eu bem sei, tudo isto pode parecer estranho, até mesmo extravagante. Mas desde que vejo as coisas assim tenho a sensação de que, pela primeira vez, encaro a vida de uma forma atenta e lúcida.»
Comboio nocturno para Lisboa
Pascal Mercier

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