quinta-feira, 30 de abril de 2015

Página-a-página #194


«(...) O nascer do Sol na Mongólia é qualquer coisa de extraordinário. Num abrir e fechar de olhos, o horizonte transforma-se numa débil linha que emerge das trevas e se estende devagar, como se a mão de um gigante lá no alto estivesse, lentamente, a fazer subir o manto da noite à superfície da Terra. Era uma visão sublime, de uma grandiosidade, como já disse entes, que ultrapassava em muito os limites da  minha consciência enquanto ser humano. Ao contemplar aquele espectáculo, tinha a sensação de que a minha própria vida se dissolvia pouco a pouco, até desaparecer no nada. Coisas banais, como as vicissitudes dos seres humanos, não tinham cabimento naquela dimensão. Desde tempos imemoriais, quando ainda não existia nenhuma forma de vida, o mesmo fenómeno repetira-se milhões, centenas de milhões de vezes. Atónito, fiquei ali, absorvido na contemplação do alvorecer, esquecido do dever militar.»
Crónica do Pássaro de Corda
Haruki Murakami

terça-feira, 28 de abril de 2015

Página-a-página #193

«(...) Uma vez, andava ainda a estudar, perguntei-lhe qual a receita para todo aquele êxito. Isto porque em Ginza tinham aparecido locais parecidos com os seus, mas uns funcionavam bem e outros iam à falência, e eu não entendia por que razão. Em jeito de resposta, o meu tio estendeu as palmas de ambas as mãos e mostrou-mas. "É o meu magic touch", respondeu ele, com uma expressão séria. E mais não disse.
É possível que tivesse realmente um toque mágico. Mas o certo é que também possuía o dom de se saber rodear de excelentes colaboradores. Pagava salários elevados, tratava bem os seus empregados e eles, por seu turno, adoravam-nos e trabalhavam no duro. "Quando vês alguém que tem valor, deves investir nessa pessoa sem pensar duas vezes e dar-lhe uma oportunidade", disse-me ele um dia. "As coisas que podes comprar com dinheiro, o melhor é fazê-lo sem te pores a pensar demasiado no que ganhas e no que perdes. Trata mas é de guardar a tua energia para aquelas coisas que o dinheiro não pode comprar."»
Crónica do Pássaro de Corda
Haruki Murakami

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Foi para ti que criei as rosas.
Foi para ti que lhes dei perfume.
Para ti rasguei ribeiros
e dei às romãs a cor do lume.

Foi para ti que pus no céu a lua
e o verde mais verde nos pinhais.
Foi para ti que deitei no chão
um corpo aberto como os animais.

Foi para ti que criei as rosas
Eugénio de Andrade

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Página-a-página #192

«-Sim, As leis, em última análise, existem para regular todos os fenómenos que se produzem sobre a face da Terra. O mundo no qual a luz é luz e a sombra é sombra. Um mundo onde o yin é o yin e o yang é o yang. Um mundo onde "eu sou eu/Ele é ele:/É Outono e anoitece". O teu lugar não é aqui. Tu pertences a um mundo intermediário, um pouco mais acima ou um pouco mais abaixo do nosso.
-Qual é melhor? -perguntei eu só por curiosidade. - Quer dizer, mais vale estar em cima ou em baixo?
-A questão não é essa -respondeu o senhor Honda. Acometido por um breve ataque de tosse, expectorou o catarro para um lenço de papel. Depois de o examinar atentamente, amarrotou o papel e deitou-o para o cesto dos papeis. -Não se trata de ser melhor ou pior. A ideia, aqui, é de não resistir à corrente. Vem-se à tona quando se deve vir à tona e mergulha-se quando se deve mergulhar. Quando tiveres de subir, procura a torre mais alta e trepa por ela até ao topo. Quando tiveres de descer, procura o poço mais fundo e desce até ao fim. Quando não houver corrente, fica tudo seco. E se ficar tudo seco à tua volta, o mundo vê-se envolto em trevas. "Eu sou ele/ Ele é eu:/ É Primavera e anoitece." Que é como quem diz, quando renuncio a mim, existo.»
Crónica do Pássaro de Corda
Haruki Murakami

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Página-a-página #191

«Pergunto-me até que ponto será possível um ser humano conhecer outro ser humano a fundo.
O esforço sincero no sentido de conhecer alguém implica da nossa parte investir nessa tarefa tempo e energia, mas, vendo bem, em que medida é que ficamos a conhecer a sua verdadeira essência? Estamos convencidos de que conhecemos a outra pessoa bem, mas saberemos verdadeiramente o que importa acerca dela? 
Comecei a pensar nestas coisas a sério uma semana depois de ter deixado o emprego no escritório de advogados. Até aí, nunca na minha vida - nem uma única vez - me tinha confrontado com uma questão séria desta natureza. E porquê? Talvez por estar demasiado absorvido pela árdua tarefa de viver a minha própria vida. O que acontece é que tinha pura e simplesmente estado demasiado ocupado para pensar em mim mesmo.»

Crónica do pássaro de corda
Haruki Murakami

terça-feira, 14 de abril de 2015

Uma boa história nunca acaba #119


Two night stand (2014). Comédia. Romance. Desta vez trago-vos um filme bem levezinho mas agradável. É um filme divertido com uma pitada de romance à mistura portanto não é certamente um filme a não perder mas sim um filme de ver no sofá num domingo à tarde :p A história foca-se numa rapariga, Megan, que desastrosamente acaba um relacionamento de longa data, assim sendo, um pouco forçada, decide entrar no mundo do "online dating". Até que conhece um rapaz, e tem o tipico caso de uma noite, mas infelizmente o destino tem algo mais programado para ela (o que é obvio pelo título) e acaba por ficar presa na casa dele por causa de uma tempestade de neve. Resumidamente é um filme que aconselho para passar um bom bocado. Certamente daqui a uns anos ou meses não se vão lembrar dele, mas pelo menos durante 86 minutos tiveram um momento agradável. Além de que as conversas são bastante divertidas, e, até acabam por ser interessantes no que diz respeito a relacionamentos. 

domingo, 12 de abril de 2015

Banda sonora de Ruby Sparks


Olá a todos! Hoje vim falar-vos um pouquinho de uma música que não me sai da cabeça desde o momento em que a ouvi. Chama-se She's real, é da autoria de Nick Urata e faz parte da banda sonora de um filme que mencionei há bastante pouco tempo aqui no blog, Ruby Sparks. Toda a banda sonora do filme, com excepção de uma ou duas músicas, é da autoria deste mesmo compositor. Vou deixar aqui um vídeo com a música referida! Além desta, também a música Quand Tu Es la de Sylvie Vartan ou Ca Plane Pour moi de Plastic Bertrand marcam positivamente o filme. E só a banda sonora do filme já era motivo suficiente para ver o filme mas quando a esta se junta um bom enredo, temos a combinação perfeita da sétima arte! Mais uma vez, vejam o filme, nem que seja pela banda sonora... Aqui fica a dica!

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Página-a-página #190

«- Os seres humanos evoluíram progressivamente ao longo de milénios, inventando novas tecnologias: esfregar gravetos para se aquecerem, desenvolver a agricultura para se alimentarem, inventar vacinas para combaterem as doenças e, agora, criar ferramentas genéticas para ajudarem a aperfeiçoar o nosso corpo para sobrevivermos num mundo em mudança. -Fez uma pausa. - Penso que a engenharia genética é apenas mais um passo numa longa linha de avanços humanos.
-Portanto acha que devemos aceitar estas ferramentas de braços abertos?
-Se não as aceitarmos -respondeu Sienna -, somos tão pouco merecedores da vida como um homem das cavernas que tivesse preferido morrer congelado só porque tinha medo de atear uma fogueira.
(...)
-Não quero parecer antiquado -começou -, mas fui criado com as teorias de Darwin e não posso deixar de questionar a sensatez de tentar acelerar o processo natural da evolução.
-Robert -disse Sienna enfaticamente -, a engenharia genética não é uma aceleração do processo evolutivo. É o rumo natural dos acontecimentos! Estás a esquecer de que foi a evolução que criou Bertrand Zobrist. A inteligência superior dele foi fruto do mesmíssimo processo que Darwin descreveu... uma evolução ao longo do tempo. O conhecimento raro de Bertrand sobre genética não surgiu como um rasgo de inspiração divina... foi fruto de anos e anos de progresso intelectual humano.
Langdon remeteu-se ao silêncio, ponderando a questão.
-E enquanto darwinista - continuou ela - sabes que a natureza arranjou sempre uma maneira de manter a população sob controlo, com pestes, fomes, cheias. Mas deixa-me fazer-te uma pergunta: não será possível que, desta vez, a natureza tenha arranjado uma maneira diferente? Em vez de nos sujeitar a desastres horrendos e desgraças... talvez a natureza, através do processo evolutivo, tenha criado um cientista que inventou um método diferente para reduzir o nosso número a longo prazo. Nada de pestes. Nada de mortes. Apenas uma espécie mais em sintonia com o seu meio ambiente...»

Inferno
Dan Brown

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Página-a-página #189


«-Transumanismo - disse Sinskey - é um movimento intelectual, uma espécie de filosofia, e está rapidamente a criar raízes na comunidade científica. Afirma essencialmente que os seres humanos devem utilizar a tecnologia para superar as fraquezas inerentes aos seus corpos humanos. Por outras palavras, o próximo passo na evolução humana deve ser começarmos a fazer engenharia biológica a nós próprios.
-Parece ameaçador - disse Langdon.
-Como todas as mudanças, é apenas uma questão de grau. Tecnicamente, andamos a melhorar-nos há vários anos... a desenvolver vacinas que tornam as crianças imunes a certas doenças como a poliomielite, a varíola, a febre tifoide. A diferença é que, agora, com os avanços do Zobrist na engenharia genética na linha germinal, estamos a aprender a criar vacinas hereditárias, aquelas que afectam o receptor ao nível das células germinais... tornando todas as gerações subsequentes imunes a essa doença.
Langdon pareceu assustado.
-Então a espécie humana iria essencialmente sofrer uma evolução que a tornaria imune à febre tifoide, por exemplo?
-É mais uma evolução assistida - corrigiu Sinskey. - Normalmente, o processo evolutivo, seja uma salamandra a desenvolver pés ou um macaco a desenvolver polegares oponíveis, leva milénios a acontecer. Agora podemos fazer adaptações genéticas radicais numa única geração. Os defensores da tecnologia consideram-na a expressão máxima da "sobrevivência dos mais fortes" darwinista... os humanos a tornarem-se uma espécie que aprende a melhorar o seu próprio processo evolutivo.
-Parece mais alguém a desempenhar o papel de Deus - respondeu Langdon.»
Inferno
Dan Brown

sexta-feira, 3 de abril de 2015

Página-a-página #188


«-Não é impossível, Robert, apenas impensável. A mente humana tem um mecanismo primitivo de defesa do ego que nega todas as realidades que produzam demasiado stresse para o cérebro. Chama-se negação.
-Já ouvi falar em negação - brincou Langdon -, mas não acho que exista.
Sienna revirou os olhos.
-Engraçado, mas acredite, é muito real. A negação é uma parte fundamental do mecanismo de defesa humano. Sem ele, acordaríamos apavorados todas as manhãs a pensar em todas as formas como podíamos morrer. Ao invés, a mente humana bloqueia os nossos medos existenciais concentrando-se em tensões com que podemos lidar... como chegar ao trabalho a horas ou pagar os nossos impostos. Se temos medos existenciais mais amplos abandonamo-los muito rapidamente, concentrando-nos logo em tarefas simples e trivialidades quotidianas.
(...) -Na mitologia antiga - disse Langdon -, um herói em negação é a derradeira manifestação da arrogância e do orgulho. Nenhum homem é mais arrogante do que aquele que se julga imune aos perigos do mundo.»
Inferno
Dan Brown

quarta-feira, 1 de abril de 2015

Um desafio por mês #29


Abril #17

Intensamente.
Intensamente.
No limite do absurdo nada existe. E no entretanto existes tu.
Hoje abeirei-me de uma mesa alta, estava sozinha no mundo, tinha de escrever. Lá fora era Primavera embora eu preferisse que fosse Outono, era-me mais familiar àquela ocasião. Entre tragos de café quente enlouquecia. E na loucura, como sabes, nada existe, assim como no limite do absurdo nada existe. Escrevia palavras desconexas, e pensava no ridículo da situação. Diziam-me escritora pela habilidade humana de com o membro que, por constituição, se designou de mão empunhar um objecto que, pela mesma constituição, se elaborou e se chamou de caneta depositar pedaços de tinta alinhados (note-se este adjectivo só ter relativo valor dentro do paradigma desta mesma ridícula constituição) sobre uma folha de papel. E por isso era escritora. E por tantas outras ridículas coisas era outras tantas ridículas almas, sendo sumariamente eu. E o ridículo da situação a assolar-me. No absurdo chegava a ser astronauta quando, por impulso de liberdade, saltava e tirava os pés do chão habitando, por meras fracções de segundo, o espaço. No limite do absurdo sou tudo. E sendo tudo serei plena. Plena tanto de tudo como de vazio. De nada. E o ridículo da situação a assolar-me. No absurdo do limite nada existe, por tudo existir em plenitude. E no entretanto existes tu. Intensamente. Intensamente.
Alexandra Oliveira Villar