segunda-feira, 31 de julho de 2017

«A música, transpirada do piano, andava a tocar-nos à volta da pele, como dedos cruzados por dentro, como veias. Nesse tempo eu tinha vinte anos ou menos, ou talvez tivesse uma eternidade, porque nessas idades não se envelhece, cresce-se. E tu eras uma espécie de chapéu, que é aquilo que une a nossa cabeça ao céu. Eras um chapéu de palavras e línguas distantes, e água e vinho, tudo misturado. Os teus dedos faziam-me tropeçar nas palavras, e eu, em vez de seguir em frente com as frases, soluçava, eram sílabas estranhas a que normalmente chamamos gemidos. E havia sempre aquela música que nos unia, uma música que ninguém sabia assobiar, uma harmonia que não era possível tocar no piano. Era assim que nos abraçavamos. Lembro-me de nos sentarmos, juntos, ao por do sol. Tu eras um recorte nocturno, preto, eu era luz. Era desse modo que nos dividiamos e era assim que nos misturavamos. Um dia seremos muito velhos, seremos rugas, e, ao contrário de quando éramos novos, saberemos que vamos morrer. No entanto, isso dar-nos-à uma sensação de eternidade, algo que nunca experimentamos antes, dar-nos-á dias a mais, porque saberemos que temos dias a menos. Continuaremos a ser uma melodia, mesmo depois de tudo se calar.»

Cartas de Gould, recolha da CIA

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