quinta-feira, 6 de julho de 2017

Página-a-página #173

«E, todavia, como é difícil explicar-me! Há no homem o dom perverso da banalização. Estamos condenados a pensar com palavras, a sentir em palavras, se queremos pelo menos que  os outros sintam connosco. Mas as palavras são pedras. Toda a manhã lutei não apenas com elas para me exprimir, mas ainda comigo mesmo para apanhar a minha evidência. A luz viva nas frestas da janela, o rumor da casa e da rua, a minha instalação nas coisas imediatas mineralizavam-me, embruteciam-me. Tinha o meu cérebro estável como uma pedra esquadrada, estava esquecido de tudo e no entanto sabia tudo. Para reparar a minha evidência necessitava de uma estado de graça. Como os místicos em certas horas, eu sentia-me em secura. Fechei os olhos raivosamente e quis ver. Regressava à aldeia, a essa noite de Setembro, quando meu pai morreu. Se tu viesses, imagem da minha condição... Se aparecesses... Como me esqueces tão cedo, como te sei e te não vejo!»
Aparição
Vergilio Ferreira

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