segunda-feira, 31 de julho de 2017

«A música, transpirada do piano, andava a tocar-nos à volta da pele, como dedos cruzados por dentro, como veias. Nesse tempo eu tinha vinte anos ou menos, ou talvez tivesse uma eternidade, porque nessas idades não se envelhece, cresce-se. E tu eras uma espécie de chapéu, que é aquilo que une a nossa cabeça ao céu. Eras um chapéu de palavras e línguas distantes, e água e vinho, tudo misturado. Os teus dedos faziam-me tropeçar nas palavras, e eu, em vez de seguir em frente com as frases, soluçava, eram sílabas estranhas a que normalmente chamamos gemidos. E havia sempre aquela música que nos unia, uma música que ninguém sabia assobiar, uma harmonia que não era possível tocar no piano. Era assim que nos abraçavamos. Lembro-me de nos sentarmos, juntos, ao por do sol. Tu eras um recorte nocturno, preto, eu era luz. Era desse modo que nos dividiamos e era assim que nos misturavamos. Um dia seremos muito velhos, seremos rugas, e, ao contrário de quando éramos novos, saberemos que vamos morrer. No entanto, isso dar-nos-à uma sensação de eternidade, algo que nunca experimentamos antes, dar-nos-á dias a mais, porque saberemos que temos dias a menos. Continuaremos a ser uma melodia, mesmo depois de tudo se calar.»

Cartas de Gould, recolha da CIA

segunda-feira, 10 de julho de 2017

Uma boa história nunca acaba #173


La La Land (2016). Musical. Comédia. Drama. Los Angeles, Mia tem um sonho: singrar em Hollywood e tornar-se uma estrela de cinema mundialmente conhecida. Ao mesmo tempo que insiste em mostrar o seu talento nos vários "castings" onde, por infortúnio, nunca é seleccionada, vai sobrevivendo à custa de um pequeno ordenado de empregada de mesa. Sebastian, por seu lado, é um pianista prodigioso mas pouco valorizado que ambiciona ter o seu próprio bar, onde possa dar largas à paixão pelo jazz. Um dia, sem que o esperassem, os seus destinos cruzam-se e eles apaixonam-se perdidamente. Apesar do amor sincero e do esforço por incentivar os sonhos um do outro, aquela é uma cidade estranha, onde a competição e a busca individual pela fama geram inevitáveis obstáculos aos relacionamentos. Com argumento e realização de Damien Chazelle – realizador do oscarizado "Whiplash - Nos Limites" –, "La La Land" transformou-se na maior vitória de sempre na cerimónia da Associação da Imprensa Estrangeira de Hollywood ao arrecadar os sete Globos de Ouro para que tinha sido nomeado: Melhor Filme de Comédia ou Musical, Melhor Actriz de Comédia ou Musical (Stone), Melhor Actor de Comédia ou Musical (Gosling), Melhor Realizador (Chazelle), Melhor Argumento, Melhor Banda Sonora e Melhor Canção Original. Para além de Stone e Gosling como protagonistas, o elenco conta com J.K. Simmons, Rosemarie DeWitt, Thom Shelton e ainda com a participação especial do músico John Legend. Um filme a não perder!

quinta-feira, 6 de julho de 2017

Página-a-página #173

«E, todavia, como é difícil explicar-me! Há no homem o dom perverso da banalização. Estamos condenados a pensar com palavras, a sentir em palavras, se queremos pelo menos que  os outros sintam connosco. Mas as palavras são pedras. Toda a manhã lutei não apenas com elas para me exprimir, mas ainda comigo mesmo para apanhar a minha evidência. A luz viva nas frestas da janela, o rumor da casa e da rua, a minha instalação nas coisas imediatas mineralizavam-me, embruteciam-me. Tinha o meu cérebro estável como uma pedra esquadrada, estava esquecido de tudo e no entanto sabia tudo. Para reparar a minha evidência necessitava de uma estado de graça. Como os místicos em certas horas, eu sentia-me em secura. Fechei os olhos raivosamente e quis ver. Regressava à aldeia, a essa noite de Setembro, quando meu pai morreu. Se tu viesses, imagem da minha condição... Se aparecesses... Como me esqueces tão cedo, como te sei e te não vejo!»
Aparição
Vergilio Ferreira