«(...)A minha tia dizia que que o fogo, onde quer que estivesse, era também a boca de deus. Porque o que consumia entrava numa dimensão paralela. Desmaterializava-se. Tornava-se insondável. Eu achava que aquele fogo não era anfitrião. Seria certamente a boca do diabo. A mulher enfurecia-se. Sem o fogo, na Islândia gelada do inverno, não sobreviveríamos. O fogo era a mão quente de deus. Estendida sobre nós por generosidade. O fogo era anfitrião. Consumia os livros como se deus os lesse. Haveria de julgar cada frase. Os escritores teriam sempre longas contas para acertar com deus, por se atreverem a deixar ideias mais perigosas ao serviço dos mal preparados, dos ingénuos, dos sonhadores, dos que errariam em qualquer decisão perante as questões mais elementares. Deus haveria de sentenciar cada texto e cada memória, e todos os escritores seriam triturados entre os seus dedos para caírem como pó no esquecimento do inferno. A nós, competia nada, apenas assear, organizar, obedecer. Não ler, pensei, era como fechar os olhos, fechar os ouvidos, perder sentidos. As pessoas que não liam não tinham sentidos. Andavam como sem ver, sem ouvir, sem falar. Não sabiam sequer o sabor das batatas. Só os livros explicavam tudo. As pessoas que não lêem apagam-se do mapa de deus. Eu disse. (...)»
A desumanização
Valter Hugo Mãe
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